E de repente eu percebi, já não estava mais lá.
Interior de Gruta, óleo sobre madeira, 1960, Clarice Lispector
Horas a fio, observo com esmero minhas próprias mãos, trêmulas, já não organizo tão bem as letras como costumava, meus dedos já não são mais tão compridos, não respeito meus cadernos de caligrafia torta e se sobrevivo de palavras é puramente por milagre divino. Minha memória se esvai à medida que desato a linha temporal que me enrola pouco a pouco, escrevo por necessidade mas sobrevivo aprisionada dentro desse corpo tão palpável quanto irreal.
Olho para minhas mãos, trêmulas, e já não sei mais se são elas que se movem freneticamente ou se são os olhos que fazem a força de um elefante para enxergá-las. Com sorte ainda me lembrarei das minhas mãos (e os pés) amanhã ao acordar - talvez trêmulo esteja mesmo meus miolos.
Então, organizo as letras uma atrás da outra - como faço com meus fósforos já queimados na calçada de minha casa - tenho esperança de que algo me surja assim. Acho que perdi a meninice e a cegueira já me irrita mais do que atormenta. Mas preciso pagar minhas contas e apesar de tudo, ainda existe um mundo debaixo da minha pele enrugada. Todo escritor tem algo de insano dentro do próprio crânio, é difícil encontrar motivos para viver de inventar tanta asneira.
Sobre meu leito, me ponho na horizontal. Tenho tido visões luminosas enquanto estou nesse limbo entre sonhando-acordada. Acho que enquanto mulher quase cega e quase esquecida, só posso viver neste quase lugar; e além do mais também quase sozinha, visto que as palavras são minha única companhia e, junto da memória, só me visita quando convém. Ora, pensando bem, acho que se a palavra fosse uma pessoa nesse plano material, ela seria minha filha (única) e seria, ainda, filha ingrata - daquelas que abandonam a mãe cega e esquecida, ao léu, como um sapato velho, numa casa de repouso qualquer.
Caro leitor, depois de todo o drama, preciso lhe dizer que menti. Não sou profissional e só vos digo o que me vêm, as ideias são vivas e meus trêmulos dedos apenas instrumento do acaso. Talvez eu seja mesmo uma mentirosa profissional - não é isso o que faz um escritor? Minto e só depois é que respiro. Já nem sei se respiro, acho que como quase tudo, eu só quase respiro.
O fato é que agora mesmo me lembrei de algo (e peço paciência com esta pobre idosa que vos fala, neste instante és minha única companhia) e esse algo talvez acabe num outro algo que, se me permite confessar, descobriremos juntos.
Era sobre uma casa, eu acho - esse quase sonho me veio hoje mesmo enquanto eu estava em meu quase lugar - mas não sei bem se era real, posso dizer quase real ou já está farto desta quase piada? Não me permito confiar na memória confusa que me habita, acho que acima dos olhos, ela me diz que é uma lembrança.
Eu era um sentido, uma flecha, tinha os pés para pisar, as mão para tatear, os dedos e os olhos quase mais cegos do que os que possuo neste momento. Não sei se cegos por cegueira ou cegos por tanta luz que havia naquele (quase) lugar, não sei se estou quase louca mas ousaria dizer que não havia paredes!
Recém desperta, dentro deste corpo cômico que me pertenceu apenas e exclusivamente naquele momento mágico, pus me a caminhar: eu estava descalça e completamente nua, não sei dizer se ainda era mulher-homem-bicho mas em pé pude sentir meus joelhos como há muito não sentia.
Muito do que enxergo agora é apenas um ato luminoso - como um cajado - e meus pés se arrastam sobre esse assoalho que mesmo quase cega posso dizer com certeza: é vermelho. Chego mais perto da beira, ainda estou muito confusa sobre o que está acontecendo, mas não posso perder a oportunidade de pôr uma perna em frente a outra assim, sem muitas dificuldades. Eu ando sem rumo feito cabra cega. Gargalho sem parar, é um riso expressivamente alto. Sabe, eu gosto de rir e caminhar - diria que esses são meus dois não-quase-algo.
De maneira inesperada, a estrela deste quase sonho chega ao limite espacial em que foi submetida e para sua decepção havia sim uma parede. Na verdade, haviam lá todas as paredes. Eu estava deslumbrada, me sentindo um peixe beta (dizem que são cegos também). Este espaço é um aquário, conclui. Só um louco sem miolos moraria neste lugar imaginário, todavia apenas uma cabeça mágica pensaria em algo assim.
Tenho a sensação de estar sendo observada, essas paredes me deixam tonta e confusa, elas existem ao mesmo tempo que não - ou talvez eu só enxergue muito mal. Acho que sou observada por outra versão de mim mesma, pensando assim fico mais tranquila ou preocupada pela minha própria loucura. Chego mais perto de um objeto curioso, visto que esta sala (se posso chamar assim) não possui muitas coisas, cerro bem meus olhos e os deixando entreabertos posso filtrar a luz que tanto me impede de enxergar com clareza. Temos então duas paisagens, se essa cabeça ainda pode supor algo, uma aprisionada sobre tela e outra aprisionada para o lado de fora - como espírito livre me recuso admitir que quem está aprisionada num aquário sou eu.
Apalpo as paredes deste retângulo único, como se fosse uma corrida entre meus dedos, se não fosse a certeza que o tato ainda me proporciona, eu diria que estas paredes são um grande borrão verde. Não encontro saída. Acabo de perceber algo curioso, caro leitor, acho que estamos flutuando. Quero sair daqui para observar da perspectiva de fora, mas mesmo que eu esteja do outro lado, o único poder que me foi dado é o da suposição.
Canso de retangular, penso até que minha visão está retornando pouco a pouco - não está. Um pé na frente do outro, um, dois, três, quatro, conto até doze, em passos mais do que curtos - rastejantes - no treze vou de encontro à outra parede (estou cansada de paredes) mas agora esta me parece mais real.
Levanto toda minha cabeça e vejo como atravessa o teto, essa parede real, ainda peculiar mas muito real. Sou capaz de dançar ao seu redor, parece até uma ciranda de tão cilíndrica. Não penso duas vezes antes de dar a volta por completo, usando sempre a ponta dos dedos das mãos mas também a ponta dos meus dedos dos pés, rodopio até cansar - confesso que cheguei a me embalar toda naquele volume, quando a gente não enxerga com os olhos, resta apenas enxergar com o corpo.
Estou farta de rodar, caminhar ou supor qualquer coisa lógica nesta situação em que me encontro - acho eu que virei criatura - procuro de onde eu saí, o ponto inicial. Até os melhores joelhos que eu poderia ter não suportariam tamanha embriaguez que estou sentindo, não estou habituada a atividades que envolvam tanto movimento corpóreo. Acho que na próxima vida serei bailarina, está decidido.
Vou dançando como posso até meu leito, não sem antes esbarrar num armário que rasga o espaço interno aquariano, casa estranha. Me sinto confortável partindo do pressuposto da invenção, mas ainda sim penso que aos poucos estou virando nossa estrela quase cega - é assim que eu a chamo.
Em meu quase sonho, sou esta criatura: quase cega mas não quase esquecida - como se esquece das coisas que nunca se viu. De novo na horizontal, inutilmente fecho e abro os olhos, minhas pálpebras são puxadas para baixo conforme eu as tento abrir. Acho que meus dedos endureceram naquela cama e não sei se quase morri ali mas, naquele momento eu percebi minha própria ausência.
Acho que em meu quase sonho, neste quase lugar, descobri só agora algo que me faltava o conhecimento, fato que merece ser compartilhado num sussurro indiscreto: não fui bailarina tampouco cabra cega, mas fui, todo o tempo, raio de sol.
texto por sabrina ayumi
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